
Na Luta e na Paz
Por Marina Silva – Ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima
Quando fundamos a Rede Sustentabilidade, em 2013, colocamos no Estatuto uma cláusula: ao completar 10 anos, teríamos que decidir se sua existência seria mantida ou encerrada. Não queríamos manter uma organização partidária desnecessária para o Brasil, uma sigla como tantas outras, que não ajudasse a renovar a política e ampliar a democracia. Queríamos uma organização política diferente, em que a sustentabilidade fosse mais que uma palavra, o sonho orientador de uma prática permanente, um modo de ser e viver. Pois bem, a Rede foi registrada oficialmente em 2015 e chegou a hora de responder à pergunta: nosso compromisso se mantém?
Para sermos coerentes com os princípios e valores que nos levaram a criar a Rede, devemos fazer uma releitura profunda de nossos documentos fundadores: a Carta de Princípios, o Manifesto e o Estatuto. Principalmente, faremos um exame sincero e verdadeiro de nossa trajetória, reafirmando nossos acertos para ampliá-los e nossos erros, para corrigi-los. Só assim poderemos olhar para o futuro e antecipar os novos desafios que ele nos reserva.
Quando a Rede nasceu, em 2013, recebeu o nome e a missão de um movimento que já estávamos realizando desde a luta socioambiental nas décadas de 80 e 90: conectar pessoas e organizações, movimentos e comunidades, de norte a sul do Brasil, tecendo os fios por justiça social, democracia, RESPEITO À DIVERSIDADE e defesa do meio ambiente. O sobrenome “Sustentabilidade” (que além de ambiental, é também social, econômica, cultural, política, ética e estética) também faz parte de uma construção pioneira, com ideias e práticas associadas à “Ecologia”, ao “ambientalismo”, ao “socioambientalismo”, ao “Desenvolvimento Sustentável” e ao “Bem-viver”. Nossa Rede é feita com os fios dos grandes ideais do passado: Liberdade, Igualdade e Fraternidade, da Revolução Francesa; Justiça Social, do humanismo socialista e Bem-estar, da Social-Democracia. Mas prospectamos também o futuro, com os ideais identificatórios ainda em formação e latência que formam os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, em benefício da humanidade e de todas as formas de vida, no século 21.
Por isso, antecipamos tendências. Fomos os primeiros a abrir mão do P de “partido” no nome, na lógica de defender uma nova linguagem na política. Inovamos na forma e no conteúdo, nos processos e nas estruturas. Também somos a única legenda partidária que é feminina até no nome: A Rede. Ao adotarmos como símbolo a fita de Moebius, com sua superfície inclusiva e contínua, sinalizamos a vontade de superar as antigas dualidades geradoras de polarizações paralisantes. Nos dispusemos a transitar dos limites extensivos do ideal do “ter” para os limites intensivos do ideal do “ser”. Questionando as dicotomias que atrasam a política, nos comprometemos a caminhar por dentro e por fora dos espaços institucionais, semeando no árido terreno do debate político e eleitoral conceitos como “Cultura de Paz”, “Comunicação Não Violenta”, “Consenso progressivo”, “Ativismo autoral”, “Aliança Intergeracional”, “Diálogo de Saberes” e “Horizontalidade”. Como costumo dizer, em momentos de crise, preste atenção na palavra nova.
Nossa estrutura partidária sai do convencional. A figura hierárquica do Presidente foi substituída por dois porta-vozes, sempre uma mulher e um homem, um mais jovem e outro com mais idade. Os diretórios dão lugar aos Elos, os núcleos de base aos Elos Temáticos e Setoriais, espaços de diálogo e formulação. E faço questão de lembrar os lemas que nos trouxeram até aqui, desde o mutirão de coleta de assinaturas que mobilizou milhares de voluntários em todo o país, em que afirmávamos “Só Existe o que se faz”. Slogans como “Sou + 1 na Rede” e “Pessoas de Luta e de Paz” não são peças de propaganda, mas parte de nossa identidade fundante que precisa ser respeitada, pois expressam nosso jeito de ser, nossa atitude. Essa atitude não deve se perder no tempo nem nas intempéries das divergências políticas, que são naturais e até desejáveis quando expressas e realizadas dentro de parâmetros éticos e democráticos.
Quando nascemos, fizemos uma escolha estratégica e programática de não inflar o partido, mas de promover um crescimento orgânico, como o dos ecossistemas que, quanto mais diversos, mais equilibrados e mais capazes de gerar frutos no tempo certo. Nessa década, nossas raízes se aprofundaram, nossas sementes se espalharam, nossas árvores cresceram. Tivemos colheitas relevantes para o país, como a eleição da primeira mulher indígena deputada federal da história do Brasil, com atuação corajosa em defesa dos povos originários e de toda a população brasileira.
A Rede tem que se orgulhar de seus mandatos históricos. Mulheres, jovens, mães, indígenas, pretas e pretos, pessoas com deficiência, periféricas e de origem humilde, de crenças diversas ou sem qualquer vínculo religioso, a comunidade LGBTQIAPN+, enfim, os mais diversos segmentos que antes não se sentiam acolhidos pelas estruturas partidárias agora tem um lugar seguro para defender as suas bandeiras.
Celebro todas as lideranças que já foram filiadas e, mesmo saindo, levaram consigo uma valiosa experiência de construção de uma organização de novo tipo e reafirmam, em sua atuação contra o autoritarismo e em defesa da democracia, o DNA da Rede. Aproveito também para homenagear a primeira bancada da Rede na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, em 2015. Nos orgulhamos de ter caminhado com vocês.
Sempre falo da visão antecipatória, que é a capacidade de antecipar temas e discussões. Quando as redes sociais ainda não tinham a força que tem hoje, a Rede já estava promovendo debates sobre o impacto das tecnologias digitais e sociais na política. Embora ainda estejamos longe de dar conta desse enorme desafio, mantivemos a disposição de “hackear” o sistema político e ajudamos a abrir caminho para as forças democráticas nessa nova era marcada pela tecnologia digital. Quando nem existia a Bancada do Cocar, lá estávamos nós, abrindo as portas da participação política para os povos indígenas. Quando a democracia, consolidada, não parecia estar ameaçada, lá estávamos nós, defendendo a “democratização da democracia”, considerando que era preciso ampliar os mecanismos de participação popular. Quando nem existia orçamento secreto, deputadas da Rede já destinavam emendas participativas em seus mandatos, alinhadas com as necessidades da sociedade e com total transparência.
Quando a crise climática ainda não parecia para muitos um risco iminente, a Rede defendia a urgência na mudança do modelo de desenvolvimento econômico, social e ambiental, bandeira central de todas as nossas campanhas à Presidência da República.
E quando a Democracia foi ameaçada por uma tentativa visível de instalação de mais um regime autoritário, nós buscamos e incentivamos uma frente democrática capaz de derrotar o fantasma da ditadura. A frente que se formou, com a nossa participação desde a primeira hora, não era apenas uma aliança eleitoral entre partidos, mas mobilizava e incluía os movimentos sociais, os trabalhadores, as parcelas mais esclarecidas do empresariado, os cientistas, as comunidades tradicionais, os povos originários, a diversidade ativa e criativa de nosso país. Todos pela Democracia.
Não acertamos o tempo inteiro, tivemos nossos erros, sim, e devemos analisá-los em nosso diálogo interno, de maneira sincera e fraterna. Mas penso e afirmo que não erramos no que há de fundamental, na ética que nos constitui, no desapego aos interesses de dinheiro e poder, na permanente defesa da justiça social, do meio ambiente e da democracia.
Pelo que fomos e fizemos até aqui, mas principalmente pelo que podemos ser e fazer, nestes tempos em que o planeta Terra e a humanidade enfrentam seus maiores desafios, é que defendo a continuidade da Rede e o seu fortalecimento. Faço e refaço a pergunta fundamental: a Rede Sustentabilidade é necessária ao Brasil? E respondo com um “SIM” que vem da consciência e do coração.
Esse é o momento crucial de olhar com atenção para a nossa Carta de Princípios e Valores, nosso Manifesto e Estatuto, para não deixarmos o ethos partidário ser capturado pelas inúteis disputas de poder. Que o uso republicano e democrático dos recursos financeiros se sobreponha aos interesses de controle do dinheiro. Que o diálogo nos impeça de entrar na disputa fratricida de ver quem grita mais alto. Que a Rede jamais se torne “o Rede”, “o partido rede”, a “legenda de aluguel”, de filiações de encomendas. Que a beleza utópica -e possível- do consenso progressivo nos desvie das armadilhas da manipulação de conferências e da divisão entre “vitoriosos” e “derrotados”. Que jamais nos esqueçamos de nossos compromissos fundamentais: respeito à diversidade, cultura de paz, pluralidade e ética na política.
Essa síntese de valores e atitudes é a base para nossas ideias e ação prática sobre a qual fincamos as raízes de nossa esperança, para criarmos um novo ciclo de prosperidade que ajude a combater as desigualdades e fortalecer nossa democracia. Demonstramos que Democracia e Sustentabilidade andam juntas. Somos e devemos ser cada vez mais, uma resposta à crise da civilização. A Rede é ainda mais necessária do que antes. É a realidade que nos convoca. As mudanças climáticas já entram em nossas casas, destroem nossas cidades e nossa economia, ameaçam nossa sobrevivência. As desigualdades sociais persistem e geram novas formas de violência. A democracia continua ameaçada e o autoritarismo domina boa parte do mundo.
Apesar de tudo, ainda temos esperança e podemos reafirmar o sonho de um futuro melhor, no Brasil e no mundo. Para realizar esse sonho nos organizamos, trabalhamos e lutamos. Damos a esse sonho um nome: Rede Sustentabilidade. Que nossos documentos de identidade, ilustrados e acessíveis, nos orientem e nos ajudem a realizar o sonho na vida presente, liderando pelo exemplo, no cotidiano de nossa existência, na palavra e na ação prática. Na luta e na paz.