
Um partido por uma nova relação entre a sociedade e a natureza
Nos idos de 1999 comecei a ouvir, em pronunciamentos na tribuna e entrevistas, Marina Silva dizer que os parlamentares estavam perdendo a exclusividade do diálogo com a imprensa sobre a política. Novos atores sociais tinham chegado à cena, como os movimentos sociais, os sindicatos, as organizações não governamentais com ativismo setorial nas mais diversas causas. Marina Silva registrava e saudava essa ampliação do espaço do discurso político. Usava uma imagem amazônica para sinalizar a positividade do que estava acontecendo. Dizia ela que na Amazônia os igapós mais ricos eram aqueles que sabiam desaparecer nas enchentes, ganhar novos elementos e quando as águas baixavam, deixavam em cada um uma riqueza enorme de vidas, minerais e águas novas.
Potente e imensa como as coisas amazônicas, a ideia que essa imagem passa foi um guia para a percepção e o ativismo de muita gente que lutava por espaços institucionais para uma nova maneira de fazer política em nosso país.
O mandato de senadora de Marina Silva, suas formulações e a prática do legislador coletivo, que debatia temas de interesse ambiental com a academia e o empresariado, mas também com as populações tradicionais e originárias, era um locus de convergência e de elaboração de ideias, de troca de saberes, de promoção de protagonismo para quem o tinha de fato, mas não havia conseguido se fazer ouvir em meio às estruturas e valores culturais arcaicos de uma representação política feita dentro de oligarquias, sendo passada de pai para filho, muito eventualmente para filha, que caracteriza nosso parlamento. Era preciso renovar a política, tanto na sua dimensão representativa quanto nos atores que a ocupavam. O país estava preso aos rumos que interessavam só a essas oligarquias e não haveria desenvolvimento justo e inclusivo sem a presença de outros segmentos da população nos debates e espaços de tomada de decisão. Outro modelo de desenvolvimento precisava ser pensado e passar a guiar os projetos políticos para o país, um desenvolvimento sustentável.
Do ponto de vista conceitual, a semente do desenvolvimento sustentável, defendido pela senadora que representava o estado do Acre, tinha sido plantada pelo Relatório Brundtland, publicado em 1987, assim chamado por ter sido elaborado, a pedido da ONU, sob coordenação da ex-Primeira Ministra da Noruega Gro Brundtland. O relatório recebeu o nome de “Nosso Futuro Comum”, pois se tratava de pensar o mundo e suas dinâmicas ecológicas planetárias como casa de toda a humanidade e das outras formas de vida que lhe dão base de sustentação. Nesse documento, pela primeira vez o conceito de desenvolvimento sustentável foi expresso como o modelo que permite que as atuais gerações satisfaçam suas necessidades e deixem as fontes de recursos naturais renováveis em condições de ser usadas pelas futuras gerações para atender as suas também e assim sucessivamente. Um belo desafio de autolimitação de ganância, desperdício e também de respeito à natureza e ao futuro da vida no planeta.
Politicamente, a gênese da ideia de sustentabilidade foi forjada na prática pela geração do movimento popular que trouxe Marina Silva ao cenário nacional. Essa geração tinha começado a se formar, enquanto consciência política, na luta contra a ditadura militar bem como na superação do céu de chumbo dos anos da ditadura que foi a construção da Constituição Federal de 1988. Nos artigos, parágrafos e incisos da Constituição Cidadã foram cravados sonhos de direitos de todas as gentes, de democracia, de liberdade, de defesa do meio ambiente, de respeito à soberania dos países e pela paz entre as Nações.
Com esses antecedentes e amadurecidos com toda a contribuição de mandatos populares, essa geração teve um grande protagonismo nas conquistas sociais e políticas dos anos 80 e 90. Dentre os mandatos, o da senadora Marina Silva chamava atenção da sociedade e da mídia nacionais, dos movimentos sociais de outros países, de governos e de organismos multilaterais que a honraram com prêmios e homenagens diversas. Monarquias com a de Mônaco e da Grã Bretanha, a academia chinesa, a própria ONU, entre outros, fizeram gestos de reconhecimento pelo trabalho que ela desenvolvia no parlamento brasileiro, honrando a memória de Chico Mendes e levando adiante o debate sobre a necessidade de conservar e proteger a riquíssima biodiversidade de nosso país, em particular a gigantesca biodiversidade do bioma Amazônia. Na tribuna do Senado Marina Silva também, já naquela época, alertava para os riscos ambientais, os sofrimentos com calor, seca, enchentes e toda a sorte de eventos extremos que poderiam sobrevir com a degradação ambiental afetando os processos ecológicos do planeta.
Por volta de 2010, após um mandato de Ministra de Meio Ambiente em que, entre outras políticas públicas de relevo, desenvolveu o maior programa governamental de combate ao desmatamento no planeta, com uma redução de mais de 80% dos índices de perda florestal na Amazônia, com efetividade por quase 10 anos, Marina estava concluindo seu segundo mandato de Senadora e já havia alguns milhares de pessoas interessadas e mobilizadas em várias frentes de atuação, buscando dar forma, intensidade e efetividade para suas práticas e concepções sobre como um país poderia ter uma política sustentável, o que significava ser democrática e inclusiva. Inclusiva para as faixas geracionais, para as mulheres, negros, indígenas, para as regiões do Brasil, para os muitos jeitos de viver na relação com uma riqueza imensa de biodiversidade que temos no Brasil. A expressão “nova política”, que vinha sendo usada por Marina em seus discursos e entrevistas, passou a ser um termo de identificação do anseio dessas pessoas e logo havia um movimento que se apresentava como Movimento Nova Política, entusiasticamente difundido pela juventude e ativistas ambientais.
Após o ciclo de candidatura a Presidente da República pelo PV, momento em que Marina Silva teve espaço para divulgar as ideias sobre desenvolvimento sustentável nas dimensões ambiental econômica, social, cultural, ética, política e estética, uma síntese de um conjunto de ideias amplo, rico, inovador e um programa de governo construído em diálogo com as camadas mais diversas da sociedade, mais de 19 milhões de pessoas escolheram sua proposta. Estava dada a senha para que o Movimento Nova Política buscasse sua institucionalização no espaço partidário do país.
O processo não foi homogêneo, havia um grande número de pessoas que gostaria de criar um novo partido e um número também expressivo que preferia continuar como movimento social. Era uma decisão complexa, sobre um acúmulo político que ecoava os anos 60 na luta contra a ditadura, pois dessas ruas e resistência vinham muitos sonhadores que ali estavam. O debate foi respeitoso, amplo e definiu-se que um partido seria criado, sem impedir e a continuidade da atuação de quem não gostaria de ter vida partidária e participaria da forma que escolhesse, e até na forma de ativismo autoral, mais uma elaboração que Marina Silva ofereceu para dar vocabulário de expressão aos que não acompanhariam a jornada de construir uma sigla nova.
A sistematização do caleidoscópio de ideias e conceitos de suporte, colhidos na linguagem cotidiana dos jovens, nas ricas formulações metafóricas que são borbulhantes no universo linguístico de Marina Silva, na atividade partidária de siglas europeias verdes, na produção científica de teóricos como Edgar Morin e Zingmunt Bauman, pitadas de direito ambiental, psicanálise, economia política, antropologia e a poesia que nunca pode e nunca poderá faltar, foi uma jornada de criação envolvente, cheia de entusiasmo e vida, cheia de generosidade e futuro e resultou em nosso Manifesto e Estatuto.
Complementando as ideias basilares como a inclusão e qualificando-a, veio a ideia de horizontalidade na participação e a busca de superar as falhas da democracia quantitativa – meramente numérica em que uma maioria, por mínima que seja, anula a minoria estagnando a dinâmica da vida partidária em um binômio medíocre que se expressa em termos de ganhar e perder – criamos o valor da representação da proporcionalidade na ocupação dos espaços institucionais do partido. Criamos a valorização da experiência da juventude, para quem deixaremos o legado. Ampliamos a experiência de coordenar para uma ação conjunta de gênero e, preferencialmente, intergeracional, por essa razão não temos presidência, mas Porta Vozes, um homem e uma mulher. Para viabilizar essa nada fácil divisão de poder, adotamos o valor da cultura de paz, exercida e expressa por meio de uma linguagem não violenta. Estimulamos o ativismo autoral dos que inovam. Na nossa estrutura há conectores orgânicos com os chamados núcleos vivos da sociedade, que são os Elos setoriais e temáticos, em que se pretende que além dos nossos ativistas de todas as idades, credos, raças e gêneros, possamos congregar não filiados e que possa haver debate sobre os temas de interesse para a construção da sustentabilidade no país e a elaboração de propostas a serem levadas ao partido para que as receba como contribuições.
Hoje, 16 de fevereiro de 2025, completam-se 12 anos em que realizamos o Encontro Nacional da Rede Pró Partido quando, por autoconvocação, movidos por anseios de justiça, de equidade social, de respeito á cultura múltipla de nosso povo, de uma nova relação da sociedade com a natureza baseada na sustentabilidade e, principalmente de viabilizar um futuro para todas as formas de vida na terra, quase duas mil pessoas fundaram a Rede Sustentabilidade.
Eu estava lá e me orgulho disso.
Ao longo desses 12 anos conseguimos colocar em cena, chamar atenção e participar da construção de muita coisa boa como partido, inclusive ser resistência efetiva ao período em que tentaram voltar aos anos de chumbo. Precisamos do resgate de alguns valores, de vocabulário condizente com nossos valores, das ideias fundantes. Sabemos que criar futuros nunca foi fácil, mas quem emerge da resistência tem resiliência e, pacificamente, busca fazer acontecer aquilo que foi o sonho fundante.
Jane Maria Vilas Bôas
antropóloga, fundadora da REDE, membro do Elo Nacional
2 Comentários
Desde o primeiro dia em que chegou a mim a notícia da fundação do partido Rede Sustentabilidade entrei em contato com seus fundadores, para me filiar. Por motivos burocráticos minha filiação demorou algum tempo para se efetivar, mas a partir daí sinto um orgulho imenso e uma grande responsabilidade em pertencer ao partido que Marina Silva idealizou e tornou realidade, o único partido político brasileiro que coloca a defesa da Natureza e do Meio Ambiente como prioridade número um, o que significa também a defesa das gerações futuras acima dos interesses imediatos deste momento. Companheiros e companheiras da Rede, contem comigo sempre, estamos juntos pelo Brasil e pelo planeta Terra.
Que relato inspirador sobre a trajetória da Rede Sustentabilidade! Companheira,Jane Maria esse texto transmite com muita clareza como a visão da nossa mantenadora, Marina Silva sobre inclusão, sustentabilidade e renovação política se tornou um movimento forte e transformador. É incrível ver como essas ideias cresceram e continuam fazendo a diferença ainda mais nesses tempos. Parabéns a todos que fazem parte dessa história!